“O QUE FIZESTE?” (Gn, 3 -15).
Reflexão de um professor de teologia moral sobre as agressões à vida e à dignidade da pessoa humana.
Rafael Solano. Presbítero da Arquidiocese de Londrina – PR
O ser humano, dotado de razão, tem a capacidade de interpretar, analisar e compreender os fatos que acontecem ao seu redor. Cada criatura humana foi agraciada pelo Criador com o dom da liberdade para que o pudesse procurar e, aderindo livremente a Ele, “chegasse a uma plena e feliz perfeição”. (CIC, 1730).
Elementos de vital importância são colocados no Catecismo da Igreja Católica no artigo terceiro quando se aborda o tema da liberdade do homem. De fato, na medida em que optamos pelo bem, a nossa liberdade vai amadurecendo e possibilitando a realização não só de atos bons, como também desenvolvendo em nós a capacidade de fortalecer a nossa vontade; em outras palavras, quanto mais praticamos o bem, muito mais nos tornamos livres.
Um dos maiores atentados na atualidade contra a moralidade da pessoa humana é nada mais, nem nada menos que o uso e abuso do consenso.
Isso mesmo, o consenso extrapolou os limites do pensamento e, como uma audaz e forte representação da mitologia grega, este ingressou na vida familiar, eclesial e social da nossa época.
O consenso se assemelha ao deus grego Hybris. O seu ponto de partida é o sentimentalismo desmedido misturado com uma falsa piedade que, na verdade, deriva de um agir pusilânime e anacrônico. Se o homem é livre e pode agir com liberdade, o consenso tornou-se uma espécie de cápsula onde os diversos poderes da sociedade albergam sua medíocre maneira de optar e do qual se aproveitam para dominar e aniquilar quaisquer tipo de exigência, luta ou capacidade de sacrifício. Hybris preferiu o caminho da arrogância para assim viver isolado e distante da verdade.
O consenso hoje passou a ser para muitos norma do agir moral diante de qualquer tipo de ato e, sobretudo, para qualquer decisão. De fato, aquilo que é decidido no consenso pode chegar a se transformar numa verdade moral mesmo que as consequências sejam funestas.
Situações como aquelas que vivemos constantemente, produto de uma sociedade que se afiança no sentimentalismo e na produção de seres cada vez mais sentimentais nos levam a perceber que a verdade moral tornou-se desconhecida e, claro, incômoda para aqueles que simplesmente a negam ou a descartam. Por incrível que pareça, só a verdade nos faz capazes de sermos sensíveis para enxergar a necessidade do bem e da beleza.
A pergunta que O Senhor Deus sempre fará a cada uma das criaturas não é uma pergunta sentimental, na espera de um consenso entre Ele e nós. “O que fizeste? O que fizeste com o teu irmão? Por que decidiste matar ao teu irmão? Por que levantaste a mão contra ele?”
É verdade que uma ação pode ser indiretamente voluntária quando resulta de uma negligência. Mas quando sabemos e temos clareza de que o fim não justifica os meios, não podemos aceitar como voluntário o fato de acabar com a vida de um ser humano só porque está sendo gestado no ventre de uma mãe menina. Lembremos mais uma vez: “O fim não justifica os meios”.
Um efeito pode ser tolerado sem ser querido pelo agente. Para que o efeito ruim seja imputável é preciso que seja previsível e que o agente tenha a possibilidade de evitá-lo. Uma criança de 10 anos pode ser manipulada tranquilamente pelos agentes responsáveis e estes decidirem eliminar agora a vida que está no seu ventre. Alguém pode afirmar que a criança de 10 anos não tem condições para decidir evitar a gravidez. Porém, ninguém se deteve a pensar que nas condições em que nos encontramos hoje ciências auxiliares poderiam contribuir para tutelar e garantir a vida tanto da criança mãe, como a vida em gestação.
Uma sociedade sentimentalista opta por praticar o aborto e posteriormente encher de presentes e brinquedos o quarto da menina estuprada e sobre a qual foi praticado um aborto. Quanto sentimentalismo tóxico! Foi proclamado este gesto como se fosse algo humanitário. Quanta duplicidade ética.
Uma sociedade que é incapaz de oferecer suporte psicológico, obstétrico e jurídico durante a gravidez a uma mulher que foi estuprada, quer na sua infância, adolescência, juventude ou na sua vida adulta, é sinônimo de uma sociedade atrasada e recluída em métodos que não tem eficácia, dando claros e evidentes sinais da sua falta de desenvolvimento.
Para quem decidiu consensualmente à prática do aborto sobre esta mãe menina, não houve nenhuma outra saída, aliás, não se pensou numa outra opção. Todas as outras seriam opções descabidas, razão pela qual a única opção válida e verdadeira foi aquela de praticar o aborto. Quanta arrogância…
O consenso transgrede todas as normas morais, pois se jacta da sua arrogante atitude na qual só uma via de solução existe. Assim foi exposto neste antigo poema:
“Podes observar como a divindade fulmina com os seus raios os seres que sobressaem demais, sem permitir que se jactem da sua condição; por outro lado, os pequenos não despertam as suas iras. Podes observar também como sempre lança os seus dardos desde o céu contra os maiores edifícios e as árvores mais altas, pois a divindade tende a abater tudo o que descola em demasia”.
A sociedade não se pode permitir, sequer pensar em aceitar a gravidez de quem estuprada em tão curta idade; pudesse gerar um novo ser tão diferente daquele que o gerou. Uma sociedade que clama pela tolerância como pacto, mas não como prática é mais uma vez sinônimo de um grupo que aos poucos vem se tornando infra humano.
Uma das Encíclicas de maior atualidade em nossos dias é a Evangelium Vitae. Apresentado por São João Paulo II em 25 de março de 1995, o texto é um documento distribuído em quatro capítulos. Sua especificidade, sua densidade e de modo especial a forma como o Papa desenvolve o tema da vida humana é simplesmente contundente e esclarecedor. O caráter inviolável da vida humana e de modo particular os sinais que evidenciam uma cultura da morte, cada vez mais forte no nosso mundo. Neste último quesito, o capítulo III aborda entre os números 58 a 63 o tema do “Delito abominável do aborto provocado”.
Não existe razão, ainda sendo grave, dramática e dolorosa, que possa justificar a eliminação deliberada de um ser inocente. Precisamente por isso a Igreja declara: “O aborto direto, querido como fim e como meio é sempre uma desordem moral grave”. Não existe filosofia ou corrente democrática jurídica que possa amparar a realização do aborto afirmando que vida de uma é mais importante do que a outra.
É possível afirmar que o caminho do conhecimento moral, esteja aberto a erros, a ignorância, a dúvidas; não só no âmbito pessoal como também coletivo. Só que não podemos omitir a via do conhecimento, da formação e, sobretudo, da própria razão que se vai aperfeiçoando na medida em que a pessoa avança.
Sabemos que existe um ofuscamento moral em relação à própria vida; um suposto conhecimento sobre a Lei natural, quando na verdade hoje, mais do que antes, o princípio da Lei natural está sendo sufocado e eliminado. Somos chamados a uma pratica da moral à Luz das Bem-Aventuranças. Quem descobre o sentido da moral à luz do seguimento de Cristo sabe muito bem que o bem absoluto sempre ilumina a consciência e que esta, como sacrário íntimo, permite que a pessoa se encontre com Deus, ouvindo a sua Voz e optado pelo bem.
Uma sociedade que promove o pansexualismo, a pornografia on-line, o uso desmedido de contraceptivos, negando a formação humana para a sexualidade como dom e o amor-realização, necessariamente continuará assistindo a constante destruição, violação e aniquilamento dos pequenos, dos vulneráveis e da própria dignidade humana.
Uma educação sexual como serviço à vida abriria maior espaço para a cultura à vida, evitando a proliferação da cultura à morte. A banalização da sexualidade é um dos principais fatores que cada vez mais ceifa e destrói a vida humana. A sexualidade é uma riqueza da pessoa humana na sua integralidade; energia vital, capacidade de entrar em relação; realidade originária e originante da vida. O resgate da corporeidade como dom e como totalidade unificada pode ser uma via nova de evangelização diante de situações dolorosas como aquela que estamos vivendo. Precisamos, com urgência, resgatar na vida moral de cada homem e mulher de boa vontade o elemento relacional, que nos torna cada vez mais capazes de humanidade e, neste sentido, tenho plena certeza que uma releitura da constituição Conciliar Gaudium et Spes nos permitirá abrir novos horizontes para um diálogo e abrangência da almejada civilização do amor.